segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O TEMPO DOS BUFÕES

Jacques Lecoq

A diferença entre o clown e o bufão é que o clown está sozinho enquanto o bufão faz parte de um bando: reside também em que zombamos do clown enquanto os bufões zombam de nós.

A base bufonesca levada até a paródia. Os bufões se divertem em reproduzir, a maneira deles, a vida dos homens através dos jogos e das “loucuras” (folies). A paródia não é diretamente ofensiva em relação ao público; não há vontade deliberada de zombar dele: a relação e de outra ordem.

Os bufões vêm de outro lugar, estão vinculados à verticalidade do mistério, fazem parte da relação do céu e da terra, cujos valores derrubam. Cospem no céu e invocam a terra. Nesse sentido, estão no mesmo espaço que a tragédia; cruzam-se na mesma vertical.

Os bufões são organizados hierarquicamente e vivem numa sociedade perfeita, sem conflitos, onde cada um encontra o seu lugar exato: uma imagem ideal da nossa. Existe o que bate e o que e batido, aquele que tem a palavra e aquele que é levado por um outro que não a tem, sem revolta nem questionamento algum. São polidos e ajudam uns aos outros. Por que essa perfeição? Porque não são como nós. A imaginação do mistério faz com que adquiram outro corpo, o que lhes possibilita criar uma distância entre eles e nós e poder sair na rua, estar ao nosso lado, e ao mesmo tempo permanecer si mesmo e nós também.

Cada país tem, no mais profundo da sua cultura, uma fonte bufonesca que ressurge no trabalho dos bufões: a América Latina traz seus pássaros mágicos do Volador; os ingleses, as feiticeiras noturnas de Shakespeare; os franceses, o alimento e as cozinhas rebelesianas; os alemães, os mitos da Lorelei; os suecos, os pequenos monstros das noites brancas.

O espetáculo dos bufões pertence ao teatro da imagem. Os gestos são transpostos e encontram sua organização a partir do figurino, que obriga a fazer apenas certos movimentos até chegar a uma acrobacia catastrófica que seria impossível efetuar com um corpo normal. Assim, os bufões aparecem com cor, com ventres enormes, com peitos imensos compensados por grandes bundas; bolas crescem nas suas articulações, sobre corpos filiformes. As pernas chegam a dois metros ou desaparecem debaixo do corpo, emboladas, nos rés do chão. Há também os bufões da beleza diabólica, elegantes, e os inocentes que a gente protege.

Esse povo dos bufões é imenso e não se pode precisar os limites deles. Encontramos neles, como num eco, as pinturas de Jerônimo Bosch, Aristófanes, Shakespeare, o pai Ubu, as gárgulas das catedrais da Idade Média, o bufão do rei e bebesões de quarenta anos. Os bufões pertencem à loucura, a essa loucura necessária para melhor salvar a verdade. Aceitamos do louco (bobo) o que não aceitamos de uma pessoal dita normal. Podemos desculpá-lo quando diz palavras que incomodam, mas o ouvimos, como o rei ouve o seu bobo.

Eis exemplos que a imaginação faz florescer por meio do espetáculo dos bufões. Muito diferentes uns dos outros, eles se reúnem em torno de temas que lhes dizem respeito. Vão representar diante de nós de modo heteróclito, próximo das paradas, as nossas próprias loucuras. Representam nossa sociedade, os temas do poder, da ciência, da religião, em “loucuras” (folies) organizadas segundo regras precisas em que o mais fraco dirige os outros e declara guerra porque está entediado.

Assim, os bufões denunciam e, ao mesmo tempo, propõe o espaço trágico. É por isso que os espetáculos dos bufões, em minha escola, mando que digam grandes textos poéticos. No momento mais favorável, no máximo de uma tensão, um dos bufões toma a palavra e diz, sem paródia, grandes textos: a bíblia, Artaud, Saint-John Perse, Eliot, Pasolini, Rimbaud, Shakespeare... Os bufões tornam possível ouvi-los melhor do que num serão poético com traje de noite. O ritmo, a dança martelam o solo, e os instrumentos de percussão batem o tempo em rituais que preparam o acontecimento.





Jacques Lecoq, “Le temps des bouffons” (O Tempo dos Bufões), p. 119, in Le Théâtre du geste. Mimes et acteurs. Sous la direction de (O Teatro do Gesto. Mimos e Atores. Sob a direção de) Jacques Lecoq. Paris: Borbas, 1987. – Tradução de José Ronaldo Faleiro.



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