terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Juju e Rôro - improvisação em cena: a relação entre palhaço e público.



Foto do dia da apresentação do texto, no Festival Anjos do Picadeiro 8.
O artigo abaixo foi publicado na revista Anjos do Picadeiro.

Juju e Rôro - improvisação em cena: a relação entre palhaço e público.

Caroline Holanda*

O objetivo desse trabalho é elencar alguns elementos oriundos de uma experiência cênica (Juju e Rôro) cuja participação do público ocorre como atuante na cena e, assim, compartilhar questões que emergem na formação de uma palhaça iniciante.

Procuro ainda um caminho nessa linguagem, o meu. E gosto daquele apontado pelo educador Paulo Freire (1981) quando fala da práxis num processo permanente de formação. Nesse conceito de práxis, ação e reflexão compõem uma mesma unidade. O aprendizado do palhaço, ou melhor, o aprendizado do meu palhaço, não pode ocorrer longe da prática. E isso me dá muito medo porque significa me expor a um número de erros, muitas vezes, maior que o de acertos. E isso implica, por sua vez, me defrontar com constantes fracassos... e com meu orgulho. Entretanto, meu desejo de chegar num bom nível de qualidade profissional é maior que meu medo - uma equação em constante duelo.

Após a primeira apresentação de Juju e Rôro, procurava elementos para melhorar aquilo que considerei como falhas, quando encontrei um depoimento de Tiche Vianna numa reportagem que dizia: “Em terras européias, trabalhou com um grupo de iranianos na confecção de máscaras e passou experimentá-las nas ruas. ‘Aprendi que é preciso dar a cara para bater’, diz ela, que saiu do Brasil com uma mochila nas costas e muita curiosidade e voltou como referência na construção de máscaras.” (grifo meu, on line, 2009). Vários bons profissionais da máscara do palhaço falam sobre o loooongo percurso de “tapas na cara” até que o número de fracassos seja inferior ao de acertos. Chacovachi menciona esse processo de auto-construção: “o palhaço pode se ensinar e também é uma decisão própria a investigação que a gente pode ter.(online, 2009).

Em Juju e Rorô optei por trabalhar com uma estrutura que utilizava antes de iniciar na linguagem do palhaço. Ela consta de pontos fixados e preparados com antecedência e lacunas para improvisação a serem preenchidas com a participação do público e outras interferências. Após a apresentação, reflito sobre, num processo de composição em que seleciono o que fica, o que sai, o que pode ser inserido, melhorado, etc. Assim adotei como metodologia do processo de aprendizado do palhaço e construção do espetáculo, as seguintes etapas: idéias preparadas; idéias experimentadas + improvisações/acaso + novas idéias; reflexão das idéias/acontecimento cênico. E recomeçava o ciclo...

UM POUCO DO PROCESSO

Há alguns meses fui contratada como professora temporária, atuando na Coordenadoria de Programas e Projetos, no Departamento de Arte e Esporte, na cidade de Sinop - M.T. Decidimos que nosso primeiro contato na escola seria com arte. Montamos um espetáculo para o Ensino Fundamental I. Carecia ainda de uma interferência que contemplasse o público do Ensino Fundamental II. Logo vi ali a oportunidade de exercer o palhaço. Estruturei, para os adolescentes da 5º a 8º série, a intervenção cênica de palhaço já mencionada que consistia na idéia de contar sobre a existência de um “cara” que escreveu uma das obras imortais do teatro, Shakespeare.

Na estrutura pautada no improviso, dois personagens são desempenhados por pessoas do público à medida que narro e atuo. Aí emerge minha primeira questão de relacionamento: como cativar uma pessoa da platéia para que esta não apenas entre no espetáculo, mas que isto aconteça de uma maneira mais orgânica, menos travada/tensa? Eu os percebo receosos de que o palhaço o ridicularize. Além disso, a maioria dos adolescentes parecem estar constantemente sentindo-se expostos, ridicularizados a priori. E ainda, possuem um modo de se proteger que passa preponderantemente por “sacanear” o outro (na ocasião, a “bola da vez” era eu). E mais: eu me inseri no espaço deles, sem convite. Isso difere do público que vai (num deslocamento por desejo) a um espetáculo de improvisação e/ou palhaço.

Assim, a primeira coisa a pensar no espetáculo seria definir uma entrada que possibilitasse um contato interessante, um quebra-gelo. Minha primeira idéia foi realizar um jogo, nada “psicológico”, para que alguns pudessem jogar e o “vencedor” ficaria para atuar como Rorô. Escolhi o jogo do rabinho no modo mais simples possível exigindo deles atenção, prontidão, estar presente.

Fui à primeira escola, o Centro Educacional. Realizei duas apresentações, cada qual com mais ou menos 200 adolescentes. E percebi que: o fato de alguém ganhar o jogo do rabinho não implica que esteja disposto a jogar no palco como personagem. Outra: esse jogo estabeleceu entre eu e o público uma relação de animadora de auditório, uma oferecedora de instruções onde eu solicitava ao público que se expusesse, que entrasse no jogo, mas eu mesma não o fazia, apenas dava “ordens” e assistia. Achei então que eu deveria me colocar mais, me mostrar mais como palhaço/pessoa que ali se expõe, em condição muito humana e como tal, acerta e erra e erra e erra... Mais uma observação feita nessas experiências: das duas sessões de apresentação, a primeira eu mantive 100% do público comigo, na segunda apenas uns 70%, ficando os demais no fundo do espaço, demarcando, além do outros indícios, seu desinteresse pelo acontecimento.

Pensava sobre isso, sobre o que eu poderia ter feito para trazê-los ao espetáculo... sobre como sair da condição de animadora de auditório... Encontrei uma possibilidade de resposta, num princípio fundamental do palhaço: eu deveria ter ido até eles, me disponibilizar ao diálogo, ido ao encontro e não esperar que venham a mim. Se eles não vêm até mim, eu vou até eles!

Era (e é) na relação estabelecida com o público que para mim se configurava a chave maior do problema. Procurando e refletindo sobre isso, encontro nas palavras do experiente palhaço Avner Eisenberg (on line, 2009) alimento para minhas inquietações. Ele parece apontar a relação com o público como a base sobre a qual se constrói o espetáculo do palhaço e se chega ao riso:

Eu acho que a relação com a platéia tem que ser um diálogo com quem você ainda não conhece. É como conhecer uma nova pessoa: se você tem uma idéia, um jeito que quer que ela seja, nunca funciona. Pra mim, esse é o ponto da relação, tem respeito, gentileza e um senso de conforto. [...] A relação com a platéia é como uma relação de amor, de início, palhaço e público estão se conhecendo, é a primeira vez, então você quer causar uma boa impressão. Mas se começar a contar um monte de piadas, é demais. É preciso ir devagar, desenvolvendo o interesse. É muito como uma relação amorosa [...] Eles começarão a ir com você, e então terá risadas. (grifo meu)

Pois bem. O começo da relação acontece no primeiro contato, na Entrada. No intuito de remediar esse afastamento ocorrido com o público da segunda sessão que, pensava eu, seria uma constante nas escolas onde circularia, retomei uma idéia latente que precisava ser experimentada, qual seja a utilização de farinha de trigo para demarcação de um círculo no qual eu me apresentaria. A formação do círculo não é mais do que uma desculpa para estar ali, para relacionar-se. Foi assim que na segunda escola, ocorrendo esse mesmo posicionamento espacial dos jovens, distribuídos entre o grupo dos que se aglomeravam na frente onde pensava-se que iria ocorrer a apresentação e o grupo dos encostados na parede, ao fundo, comecei a experiência com a farinha. Saí da sala da secretaria escolar, onde me preparava para entrar, com meu saco de farinha de trigo e comecei a colocar na frente dos pés dos que estavam na parede, hora espremendo-os contra a parede, me divertindo com o modo com que eles respondiam com receio de que a farinha tocasse seus pés/sapatos. Fui formando o círculo, enquanto as demais pessoas que estavam viradas para o pretenso palco chegavam e se acomodavam. Estava quase fechando o círculo quando num determinado momento me deparei com um tênis que me chamou atenção, achei bonita a cor dos cadarços. No momento senti vontade de propor a troca entre nossos sapatos. Cedi ao impulso. Trocamos. Dessa relação, eu o convidei para ser o Rorô e ele topou. Ésio Magalhães, em curso no Barracão de Teatro (SP), falou uma vez algo que eu compreendi da seguinte maneira: a relação pontual tem um poder de irradiação. Se você cativa uma pessoa, suas chances de cativar mais algumas juntas se ampliam. Cativei o Rorô... mais alguns vieram na leva... Essa apresentação super-funcionou! Gosto de identificar os porquês. Nem sempre os encontro, nem sempre quando os encontro tenho clareza sobre eles

Leo, meu Romeu!!!!



Nas escolas seguintes, situações diferentes das anteriores me desafiaram a reagir. Assim, minha entrada - em meio às pessoas que estão sobre o espaço em que ocorre a apresentação, demarcando com farinha, enquanto me relaciono com um e com outro- teria sido comprometida. Na escola Sadao Watanabe os alunos estavam já organizados em semi-círculo por conta de apresentações ocorridas anteriormente. Mesmo assim, insisti na idéia - sem sentido, já que já estavam organizados - de fazer o círculo de farinha. O jogo foi pouco, alguns alunos me pediram para colocar farinha em suas mãos o que logo virou uma atitude repetida por muitos. Apresentação tranqüila. Morna. Na escola Thiago Aranda o público me esperava sentado numa arquibancada de quadra esportiva, numa imensa distância entre eles e eu. Convidei-os para que descessem e se posicionassem mais perto de mim. Aquela distância me incomodava. A situação fora do que eu planejara também. Mas a negação da aproximação física que eu propusera me incomodava sobremaneira. Disse-lhes que se quisessem assistir ao espetáculo fossem para a quadra, onde eu já havia marcado o círculo, e que iria beber água e, ao voltar, se houvesse alguém eu continuaria a apresentação.

Apenas os de menos idade se aproximaram. Os outros não. Não saíram. Queriam ver o que aconteceria, mas não se aproximaram. O espetáculo foi o pior de todos. O garoto que atuou como Rorô preocupava-se mais em se defender de sua exposição tentando fazer graça às minhas custas do que atuar. Percebi que esse público eu não ganhei para jogar COM, mas para jogar CONTRA (mim). Após esse fracasso gigantesco (mal consegui terminar a apresentação tal foi minha incapacidade de articulação das relações), reflexão. Foi quando constatei que cometi um dos maiores erros de um palhaço... o autoritarismo e arrogância pura. Ali eu abandonei o jogo do palhaço e “parti para a ignorância”, com o orgulho ferido pela sensação de ter sido rejeitada. O autoritarismo e a arrogância quando estão presentes na linguagem o palhaço emergem estetizados, não como descontrole (será? Ainda não é clara a relação entre eu e eu-estetizado-palhaço.). Essa atitude evidenciou ainda a pouca disponibilidade para entrar no jogo por eles proposto. Eu poderia ter abandonado a farinha e subido na arquibancada... Chego a escutar as palavras do Avner: “se você tem uma idéia, um jeito que quer que ela seja, nunca funciona” (on line, 2009)

Em ambas as experiências, a tentativa de não abrir mão de uma idéia prévia impossibilitaram a procura de outro jogo de improvisação mais adequado. A isso relaciono à existência do preconceito, no sentido de idéia ou conceito formado antecipadamente. Um conhecido inimigo da improvisação... Ao optar pela cena improvisada, a disponibilidade do artista em escutar o proposto pelo ambiente é fundamental.

Gostaria de dizer que foi apenas nesse sentido que o preconceito se fez presente, mas não foi. Ao terminar as duas primeiras apresentações, percebi também que o preconceito como “opinião desfavorável” também atravessava meu fazer e minha visão de adolescente. Era preciso me desarmar... estar aberta.

POR FIM...

Além da Entrada, mais quatro momentos do espetáculo estavam roteirizados, entremeados por lacunas preenchidas pelo modo como cada atuante-público reagia, abrindo-se novas possibilidades de encaminhamento das ações e cenas. Entretanto, o presente texto começa a ficar por demais alongado e nem mesmo saí das reflexões advindas da Entrada. Mas elas parecem já servir como amostra para explicitar certas inquietações dessa relação palhaço-público num espetáculo improvisado com atuação do público como personagem.

Entendo que serão muitas as vezes em que ainda concluirei que um dos problemas centrais no espetáculo foi uma escuta débil. Sem escuta, as possibilidades de jogo passam despercebidas em função da ansiedade de impor o que estava pré-estabelecido ou ceder ao nervosismo de se expor.

Gilberto Icle (2008) aponta o tempo presente como a natureza mesmo do teatro. O que caracteriza as ações teatrais é um fazer-pensar, um fazer-estar no momento presente, que é ainda mais exigente quando se trata da linguagem do palhaço e de improvisação. E estar significa escutar. E escutar vincula-se estreitamente ao relaxamento, requisito que embora conheça sua necessidade, ainda trabalho artesanalmente e com muito esforço em seu desenvolvimento.

Por fim, gostaria de lembrar que este texto é atravessado por um conjunto de concepções acerca do trabalho do palhaço. Evidentemente, elas podem não coincidir com a visão de outros artistas, bem como mais adiante posso perceber de outro modo. Mas por hora, elas me orientam. O diálogo é muito bem vindo, me ajuda a crescer. Convido-os desde já.

BIBLIOGRAFIA

CHACOVACHI.Chacovachi entrevista Jesús Diaz, palhaço e diretor da Sensacional Orquesta Lavadero, do México. 2009. Em: http://picadeiroquente.blogspot.com/2009/08/chacovachi-entrevista-jesus-diaz.html

EISENBERG, Avner, Uma amostrinha - que é pra dar água na boca - da entrevista do Avner. 2009. Em: http://picadeiroquente.blogspot.com/2009/06/amanha-tem-lancamento.html

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

ICLE, Gilberto. Improvisação: da espontaneidade romântica ao “momento presente”. Em: FLORENTINO, Adilson; TELLES, Narciso. (Org.). Cartografias do ensino de teatro. Uberlândia: EDUFU, 2008.

VIANNA, Tiche. Tiche Vianna e as máscaras. 2009. Em: http://fitafloripa2009.blogspot.com/2009/06/tiche-vianna-e-as-mascaras.html

*Caroline Holanda é Mestre em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC, com pesquisa em Teatro de Animação e palhaça em construção. Contato: carolmassinha@yahoo.com.br Blog livre - pensando em voz alta sobre Palhaço e Teatro de Animação: http://bola-cor-e-flor.blogspot.com/



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